transumâncias ou o blog dos sem net
antes de haver esta coisa dos blogs, eu e o manso fazimos uma coisa chamada "transumâncias - crónicas ascendentes e descendentes" (se não me falha a memória do titulo completo)
era uma publicação não de periodicidade não definida que juntava num A4, dobrado ao meio e ao alto três pessoas, textos dele, fotografias minhas e designer alternante. a distribuição era gratuita e despreocupada
se não me falta a memória sairam uns 10 números e ficou sempre no ar a vontade de retomar (que achas de retomar?) estes posts crónicas ilustradas de mão em mão
por causa da senhora da bilha lembrei-me desta foto que tirei, e por causa desta foto lembrei-me desta transumância que abaixo transcrevo
" Crónica de Saudades
Luísa, avisa-me se esta crónica não estiver boa. O bar encheu-se de gente em final de noite barulhenta. Eu estou na mesa que tem mais luz a tentar escrever. Tento escrever a cidade, as pessoas, a noite. Mas dentro de mim não há silêncio Luísa. Quando fazemos amor é em silêncio, tu mordes os dedos da tua mão direita, eu fecho os olhos com força. Suor.
Dentro de mim não há silêncio, nem à minha volta. As pessoas a falar alto e a janela grande para a rua com automóveis para lá dos 0,5 de alcolémia. Eu, cá dentro, para lá dos limites legais de alcolémia para uma crónica.
A caneta escorrega e desenha palavras doentes no caderno das crónicas. Se esta não for boa avisa-me. Eu faço outra sobre o meio dia dos nossos almoços de Sábado. Eu escrevo alguma coisa sobre as tuas pernas Luísa, com aquela saia e os almoços de Domingo. As tuas pernas amor, e este bar tão diferente de tudo, com conversas impossíveis de entender, cigarros sem estilo, mesas brancas com garrafas de cerveja preta vazias, quase a cair para o infinito do chão. Quase a cair para o infinito do chão é muito mau Luísa. Não me sai nada concreto, eficaz, lúcido. As pessoas assim não vão dizer, olha gostei muito da tua crónica sobre a cidade, as pessoas, a noite. E eu Luísa, que nunca me passou pela cabeça ser escritor, nem um bocadinho escritor, porque me dói não ter palavras para nomear um bocado do mundo que seja.
Nomear o mundo. Eu escrevo porque assim tenho mais tempo para pensar o que vou dizer aos outros. Um homem precisa de dizer aos outros. Eu preciso de dizer aos outros Luísa. As conversas intraduziveis, a bebedeira dos corpos. O senhor do bar tenta pôr alguma ordem neste pequeno inferno. Ninguém quer saber do senhor do bar. Ninguém quer saber o que ele quer dizer.
Por favor Luísa, põe alguma ordem neste pequeno inferno. Preciso de um pouco da tua paz nesta escrita. Para traduzir de uma vez por todas a cidade, as pessoas, a noite. Para compreender esta santíssima trindade confusa.
A tua pele de mulher, a pele dos teus braços de mulher a serem o lugar da ternura, o cheiro a manhã nos lençois e as conversas na cama a manhã toda. As nossas conversas lentas, demoradas, sobre qualquer coisa. Eu a ter tempo de te dizer coisas ditas sem pensar, tu a estares atenta. Eu a estar atento sem pensar. E o silêncio, tão diferente de tudo. O silêncio não é eu estar neste bar a ter saudades tuas. Esta crónica afinal é sobre eu a ter saudades tuas num bar cheio de pessoas a falar coisas que não se entendem.
Tenho saudades tuas e não adianta procurar-te na cidade, nas pessoas ou na noite. Tu nunca te demoras nestes pequenos infernos."
5 comentários:
Por causa desta foto e por causa desta transumância que aqui transcreves, era uma boa ideia retomar essa publicação...
ca pra mim tambem acho...
uau! - mais um a reclamar por mais!
:-)
Gostei. Deviam continuar, sim.
boa!
retomem a publicação!
:)
(fico à espera...)
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